JOSÉ MÁRIO SILVA. Expresso, Lisboa. 30 DIC 2017 O protagonista de “Mac e o Seu Contratempo” é um autor principiante. Já sexagenário, desocupado, dedica o súbito ócio a redigir um diário de “aprendizagem” literária, em que começa por fixar a vida quotidiana no bairro de Barcelona onde habita, num verão de canícula histórica, por entre sinais de uma crise económica severa que fez multiplicar
nas ruas o número de vagabundos e pedintes. É um diário secreto, laboratório para o sonho de publicar um livro falsamente “póstumo e inacabado”, uma aventura de escrita colada à experiência da realidade, mas sempre com medo de se transformar em ficção. Aliás, o conceito de romance paira explicitamente como perigo — verdadeira “ameaça” para quem só pretende, como Nathalie Sarraute, “tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos”.
Um dia, em conversa com o vizinho Sánchez, escritor famoso e antipático, ouve-o falar de um livro por ele publicado no início da carreira: “Walter e o seu contratempo”. Uma bizarra história envolvendo um ventríloquo condenado à sua própria voz, “uma sombrinha de Java (que escondia um mecanismo assassino)” e um “maldito barbeiro de Sevilha” assassinado numa rua escura de Lisboa. Mac fica fascinado por essa obra imperfeita, cheia de incongruências e dislates, mas também de “ideia geniais”, espalhadas pelos dez contos em que a “biografia oblíqua” do ventríloquo se divide, cada um emulando o estilo de um grande
contista do passado (John Cheever, Djuna Barnes, Jorge Luis Borges, Ernest
Hemingway, Raymond Carver, etc.). O fascínio transforma-se em obsessão e o aprendiz decide reescrever, “modificando”, esse livro esquecido.
O “contratempo” de Mac é o próprio movimento da escrita, essa deambulação mental que o deixa num lugar ambíguo. Uma vez iniciado o torvelinho de ideias atrás de ideias, elas como que ganham vontade própria. Sobre o esqueleto do diário, floresce um questionamento de cariz ensaístico sobre a própria natureza da originalidade e o papel desse “obscuro parasita da repetição” que se esconde “no centro de toda a criação literária”. Isto para não falar na “incómoda tensão”, nunca resolvida, entre o real e o imaginário. Uma “tensão” que levará
Mac, como Walter, a fugir em direção à origem, ao mirífico lugar dos primeiros relatos orais, numa “Arábia feliz” que talvez não passe de uma utopia abstrata.
Fará sequer sentido falarmos em originalidade? Ao defender a “repetição” enquanto força motriz da literatura (“Vimos ao mundo para repetir o que os que nos antecederam também repetiram”), Mac, o pré-escritor do século XXI, o escritor adiado por décadas de leitura, mostra como os horizontes se podem alargar pelo simples facto de fazermos o que já foi feito, ou dito, ou pensado, mas de outra maneira. Basta mergulhar na complexidade das leituras em quarto grau; criar labirintos de referênciase citações; erguer do nada densos
novelos de histórias em que o mundo se revela uma “implacável máquina de romancear”. Mas fazê-lo — pormenor essencial — com ironia. Isto é, com o distanciamento de uma “ficção que se reconhece como ficção”. Porque “toda a narrativa corre o risco de não fazer sentido, mas não seria nada sem esse risco”. Neste romance híbrido, absolutamente livre e corajosamente arriscado, Vila-Matas é mais uma vez Vila-Matas, sempre igual, sempre
diferente, fazendo coisas novas a partir do mesmo.