Sobre ‘Bartleby e companhia’ / Kelvin Falcão Klein

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Os lançamentos não param e as pilhas de livros estão sempre se formando (seguindo os interesses e as obrigações sazonais), mas certos títulos parecem durar mais e melhor no tempo, sempre voltando à memória, sempre sugerindo uma ocasião para retirá-los da estante.

Bartleby e companhia é, para mim, um desses livros insistentes: eu lembro claramente do dia que comprei o primeiro exemplar, a leitura quase incrédula daquele material tão difícil de classificar e, ao mesmo tempo, tão próximo e estimulante (é um livro que dá ideias ao leitor, que o faz pensar e associar).

Digo “primeiro exemplar” porque acabei virando uma espécie de colecionador de versões de Bartleby e companhia (pensando agora, tenho a impressão que isso é algo que um personagem de Vila-Matas faria). Como meu projeto logo de cara foi o de estudar o livro e a obra de Vila-Matas, pouco depois de comprar e ler a edição brasileira da Cosac Naify fui atrás do original em espanhol: a edição da Anagrama levou 120 dias para chegar na Livraria Cultura de Porto Alegre e está comigo até hoje.

Ainda não era uma coleção. Devo à conjunção de um dia chuvoso e uma tarde vazia a descoberta do terceiro exemplar, que trouxe tudo à superfície: encontrei uma cópia surrada em brochura de Bartleby & Co, a tradução inglesa, em um sebo no Rio de Janeiro (a filial da Academia do Saber da Avenida Passos). Geralmente as seções de literatura em língua estrangeira nos sebos formam uma caótica terra de ninguém: manuais de ensino de idiomas ao lado de livros em italiano catalogados como se fossem em espanhol; muitas lombadas viradas para dentro, coisas no chão, poesia com sociologia, guias da Nova Zelândia com crítica literária e assim por diante.

A surpresa foi grande e interpretei o achado como um sinal – as divindades da poeira confirmavam meu investimento de tempo e energia na obra de Vila-Matas. Por mais que o narrador de Bartleby e companhia seja um solitário, é inegável que ele constrói – apesar de tudo e um pouco a contragosto – uma comunidade, um grupo, um coletivo, aquele que reúne os Artistas do Não. Anotei escrupulosamente todos os nomes e títulos mencionados por Vila-Matas no livro, um pouco na esperança de delinear claramente essa comunidade e, no processo, passar a fazer parte dela (“jamais faria parte de um clube que me aceitasse como sócio”, poderia dizer Bartleby).

Essa comunidade criada por Vila-Matas é ambivalente, como sempre foi minha própria relação com o livro. Em alguns momentos – fazendo a lista das referências, procurando em outras obras ecos de Bartleby, entrevistando Vila-Matas para escrever meu próprio livro – eu me posicionava como pesquisador, como leitor profissional, como investigador. Em outros momentos, a releitura fazia sua mágica e eu imaginava outros mundos possíveis, construindo outra versão de mim mesmo a partir da realidade paralela que o livro de Vila-Matas (romance? Ensaio?) criava.

Um trecho do livro me persegue até hoje – o momento no qual o narrador atribui a outro escritor a frase: “entre meus autores preferidos estão Robert Walser e Ronald Firbank, e todos os autores preferidos por Walser e por Firbank, e todos os autores que estes, por sua vez, preferiam”. Quando li pela primeira vez, fui surpreendido com a descrição de algo que tentava fazer de modo intuitivo: perseguir as preferências daqueles escritores que prefiro, até o infinito, até a fatiga completa das retinas.

Na minha inocência de primeira leitura, acreditei que o narrador encontra a frase em uma entrevista de Juan Rodolfo Wilcock perdida dentro de um de seus livros (um recorte de jornal deixado ali pelo narrador? Não fica claro). Ou seja, Wilcock teria dito (em uma entrevista não especificada) que seus autores preferidos são Walser e Firbank, e todos os autores preferidos por eles, e assim por diante. Quem é Walser? Quem é Firbank? Quem é Wilcock? Qual a relação possível entre eles? Ao redor dessas perguntas ofereci, como num ritual, boa parte do meu tempo e minha energia.

Esse é o paradoxo mais divertido de Bartleby e companhia: mesmo sendo um livro sobre o Não, sobre a desistência e o silêncio, é um dos livros que conheço que mais oferecem dicas de leitura e horizontes de abertura do pensamento. Evidente que não é por acaso – é esse tipo de manobra sagaz que garante a vivacidade do livro, vinte anos depois e tantos mais enquanto houver literatura.

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Kelvin Falcão Klein é crítico literário, professor de literatura na UNIRIO e autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Modelo de nuvem, 2011) e Wilcock, ficção e arquivo (Papéis Selvagens, 2018). Escreve no blog Um Túnel no Fim da Luz.

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