A arte do desaparecimento [ José Riço Direitinho en Ipsilon, suplemento de Publico, Lisboa 11 de Março de 2021]

PP - 21 ABRIL 2008 - MATOSINHOS - ENTREVISTA ENRIQUE VILA MATAS -08/04/00-Y

21 ABRIL 2008 – MATOSINHOS

Ter a literatura como tema dos seus romances é o jogo preferido do catalão Enrique Vila-Matas (n. 1948) — pelo menos desde o livro que lhe trouxe reconhecimento, História Abreviada da Literatura Portátil (1985), passando depois por Bartleby & Companhia (2000), O Mal de Montano (2002), ou Doutor Pasavento (2006), entre outros títulos que têm o processo literário como centro. A sua imaginação por vezes excêntrica opera com inteligente eficácia um estilo singular em que a ficção se compromete com o ensaio.

Esta Bruma Insensata, o mais recente romance, torna a não escapar da indagação das dificuldades de escrever hoje, parecendo querer deixar à mostra algumas angústias do autor. Se já no livro anterior, Mac e o Seu Contratempo (Teodolito, 2020), aborda a criação literária como uma “transcrição elaborada”, de onde a originalidade está ausente, neste sublinha essa misteriosa “impostura de escrever”. O romance conta-nos a história do singular vínculo entre dois irmãos: um é um famoso escritor que vive há duas décadas algures escondido em Nova Iorque (aqui é impossível o leitor não evocar as fugidias e misteriosas figuras de Thomas Pynchon ou de J. D. Salinger), que assina os livros sob pseudónimo, pratica “a arte do desaparecimento”, e o outro um tradutor que vive num casarão em ruínas, herdado dos pais de ambos, nas falésias de um lugar catalão junto ao mar. Este último foi contratado no início da carreira do outro para lhe fornecer citações de outros escritores (é um “recolector de citações”), ofício de ajudante que desempenha com algum fervor ao mesmo tempo que fornece material para que o outro use em intertextualidades, material este que é enviado em mensagens crípticas (não tendo a certeza de que o escritor as entenda, ou outra pessoa por ele, no caso a suposta mulher — de cuja existência não há certeza). O “ajudante” parece defender uma “teoria sobre a possibilidade de escrever romances com intrigas intertextuais e contra o fetichismo da originalidade”. Não se vêem desde que o escritor se instalou em Nova Iorque — nem uma fotografia trocaram, e o assunto de todos os emails trocados sempre se restringiu àquele trabalho, sem comentário pessoal.

Vila-Matas mostra-se, uma vez mais, um escritor de recursos inesgotáveis neste universo feito de temas literários e que coloca o leitor sempre perante conflitos — que serão também os do autor, as suas obsessões e dúvidas — que deixam os seus romances na prateleira dos que têm a metaliteratura como exercício. E talvez não seja descabido escrever que Esta Bruma Insensata é um dos seus livros mais metaliterários, não no sentido usual de que mostra com propósito as “costuras” da tessitura, mas porque se interroga sobre a própria ideia de realidade e de como fazer literatura. Já quase no final, quando se dá o encontro dos dois irmãos, em Barcelona, numa sexta-feira do final de Outubro de 2017 (a data assume importância por terem sido os dias de chumbo da perigosa crise política catalã, quando helicópteros militares sobrevoavam a cidade), há um diálogo entre os dois em que o narrador (o autor?) parece querer deixar clara a razão do livro: “parecia-me uma imbecilidade, dado que para mim viver era construir ficções. Havia, além do mais, muitíssimas razões de peso para afirmar que toda e qualquer versão narrativa de uma história real era sempre uma forma de ficção. A partir do  momento em que se organizava o mundo com palavras, modificava-se a natureza do mundo.”

É neste facto de a linguagem ser construtora do mundo, ao dar-nos dele uma distância crítica, que Vila-Matas justifica a literatura (a sua e a dos outros) como um olhar discrepante da realidade em relação a si mesma. As dicotomias apresentadas no romance pelos dois irmãos soam por vezes a diferentes visões num espelho quando olhadas de ângulos diferentes: talvez os dois irmãos sejam apenas as duas faces do autor em busca de uma razão válida para continuar a escrever.

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